Essência é a base. É o fundamento. É a raiz. É a  semente.  É  a parte que gera o todo.  É a divisão do átomo. Invisível, por vezes.

  • Qual é a sua essência mesmo? Agora que deixou de ser professora?                 Essa pergunta feita pelo terapeuta, foi como uma boa puxada de tapete.               Quem eu mesma sou? A perturbação me acompanhou por semanas.
  •  Até que uma bela recordação de minha infância, clareou minha travessia. Minha transição entre  a  situação ativa profissional para a situação de inativa.
  • RE- CORDA- (A)ÇÃO
  • A palavra recordação remete a rever; puxar a corda, o fio da meada das ações passadas.
  • Contei ao meu filho uma das experiências mais belas que tive na minha formação de leitora. Vivi minha infância na região rural. Num pequeno lugarejo. Poucos vizinhos. O armazém, também chamado de Bodega. A igreja católica. A usina hidrelétrica . A escola. Quando criança a achava enorme. Quando adulta, a reconheço como um prédio pequeno. No entanto, nunca deixou de ser “grandiosa de importância “na minha vida de leitora e …escriba!
  • Era 1968. ( o ano que não terminou… eita história do Brasil) Período forte da ditadura militar.
  • Mas em 1968, tinha oito anos. E apenas uma menina da roça , sem livros, pouquíssimos materiais de escola, como se denominavam os atuais materiais pedagógicos infinitos de hoje. Lembro que ganhava uma caixinha de lápis de cor com seis lápis, somente as cores primárias. Quando, finalmente , ganhei uma caixa de lápis de cor com doze unidades, foi uma alegria imensa. Com ela, meu primeiro caderno de desenho, sem linhas. Remete- me à lembrança até o cheiro daquele caderno.
  • Oito anos, 2º ano.  Poucos livros, ou nenhum. E não alfabetizada. Método fônico. Cartilha com pouquíssimos textos. Da turminha, eu e mais uma colega não conseguíamos juntar as letras e formar palavras. O que eram palavras?
  • Ah! As palavras. The  word… Essências.
  • Num determinado dia, a professora apresentou-nos um texto…enorme! Entrei em pânico diante de tantas letras…minha coleguinha Alvori também.
  • Veio a tarefa. Treinar a leitura. E até ao meio dia passar pelo exame de leitura. NÃO lembro de um tempo passar tão rápido na minha vida. Chegou minha vez do tal de exame.Éramos conduzidos à sala da coordenação.
  • Nessa sala, havia um birô de madeira com a tampa forrada com um plástico de florzinha, e o fundo azul. Plástico. Nada de papel contáctil ou envelopamentos de hoje. Na lateral, uma estante de livros. Feita com tijolos de quatro furos, cuidadosamente pintados de branco e sob eles tábuas também pintadas com o mesmo zelo. Formando três prateleiras. De livros. Não de pratos. (olha a palavra e sua essência) Cheinha de livros. Que tesouros.                                       Pra mim, naquela época, lugar de diferentes sentimentos: medo, susto, insegurança, mas de encanto. Tudo cheirava bem ali. Suave cheiro de talco. O perfume da professora, certamente.
  • Não li nada no exame. Só via um montão de letras na minha frente.
  • Alvori também voltou para a sala de aula com uma cara de fracassada.
  • Todos os colegas forma liberados. Menos eu e a Alvori.
  • E a professora profetizou:  Marta e Alvori ficam até apresentarem uma boa leitura do texto do exame.
  • Os colegas foram liberados. Era meio dia.
  • Alvori, que morava alguns quilômetros da escola,  vinha montado num belo cavalo. Começou argumentar fortemente :
  • __ Meu cavalo vai morrer de fome e de sede! Não posso ficar…
  • Ia até a janela e mostrava o cavalo amarrado numa árvore.
  • _  Veja, professora, ele não aguenta mais.
  • Irredutível, a professora saiu da sala e nos desafiou:  _ Quando voltar aqui, vocês duas, deverão ler o texto.
  • Começamos a decifração. E a fome pegando… e o medo de atrasar muito para retornar para casa. Como explicar o atraso?
  • Tentamos descobrir o que dizia no título. Deciframos. Pensa na alegria. Seríamos libertas.
  • O cavalo também. Beberia água. Comeria seu pasto livremente.
  • E nós? Alvori não sei. Mas eu descobri as palavras. Com elas, minha liberdade.
  • O texto era de Mário Quintana. O peixinho.
  • Choramos quando enfim, lemos e descobrimos com a ajuda da professora, é claro, que o peixinho morreu afogado.
  • Não aceitei o final da história. Como pode um peixinho morrer afogado!Bem mais tarde, compreendi que a literatura ficcional se mistura com a real. Como matam peixes!!!!
  • A inquietude sobre a morte do peixinho que morreu afogado moveu-me para desbravar as histórias que os livros contam. Fui liberada para casa, eu e a Alvori. E mais seu lindo cavalo.
  • Libertos. Eu para o mundo das palavras. Li  e reli todos os livros daquela enigmática estante de livros.
  • Aos poucos, fui conhecendo José de Alencar. Cecília Meireles. Olavo Bilac. José Mauro de Vasconcelos. Monteiro Lobato. Machado de Assis. Maria José Dupré.
  • Jorge Amado…Era de fato uma estante de luxo!!! A maior riqueza da minha infância e adolescência.
  • Décadas depois conheci Michel  Foucault, o historiador de ideias.
  • Reconheço-me pela a história da palavra e seus movimentos. EIS A MINHA ESSÊNCIA.
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Escrito por Marta de Fátima Borba
Seguir meu coração foi minha melhor escolha. Sou corajosa. Quero melhorar a cada dia, porque sei que não estou pronta. Preciso evoluir. O que faço ou aquilo que me acontece, tem o poder de mudar meu humor, mas como vou reagir a isso, eu decido de maneira consciente!