Há quatro anos mudei para a atual casa. Situada numa região de pouco movimento do comércio.
A tranquilidade desejada e conquistada.
Um recanto para flores, pássaros, borboletas. E…para formigas também.
Penso que as formigas estão por aqui, para me lembrar na força do coletivo. Quando são acuadas num canto, surgem em outro bem ligeirinhas. Travo com elas, alguns diálogos “estranhos”: Olha esse lugar agora é meu. Que tal vocês procurarem outro espaço? Ainda há terrenos não tomados pelos humanos…
Que nada! Elas não vão. Pequenininhas e teimosas. Correm apressadinhas pela grama, pelas calçadas. De vez enquanto quando piso numa, antes de morrer, ataca-me. Mas não me tiram a tranquilidade.
Esse post não é só para falar das minhas intrusas, ou sou eu, a intrusa? Deixemos isso para o final do texto. O relato é sobre um toque de gaita. Um som intruso.
O som da gaita que invade meu espaço aéreo, aos finais das tardes, é uma trilha sonora para as leituras costumeiras desse horário.
Há quase quatro anos ouço o toque de gaita. Não conheço o gaiteiro. É morador da casa situada na rua acima da minha.
Toca músicas do regionalismo gaúcho. Das antigas. Regionalismo de raiz. No repertório não falta “as mocinhas da cidade, são bonitas e dançam bem, uma vez dancei como uma moreninha e já fiquei querendo bem…”
Por se tratar de músicas que ouvia na minha infância e adolescência, o som me transporta para lembranças daquele tempo. Distraio na leitura e fico olhando o céu, o som parece embalar o revoo das andorinhas apressadas na busca por um lugar para dormir…
O toque da gaita, acredito, não chega em todas as casas da rua, não é percebido por conta que é um horário de chegada ou saída dos moradores, ora para trabalho ora para estudo, poucos atentam para o som sutil da gaita. Não é o meu caso.
Fico esperando pelo ensaio do músico. Sei que não fará nenhum show, nenhuma apresentação. Não é seu objetivo, é um passatempo para ele. Para mim, é a trilha sonora dos dias que se despedem, e das noites que se anunciam.
Entre um dia e uma noite, inesperadamente veio a pandemia do coronavírus.
O som da gaita desapareceu.
Por um tempo, pensei que o vírus letal pudesse ter atacado o gaiteiro.
Sentada no banco do quintal, restaram por longos dias, observar a correria das formiguinhas. Ouvir o pássaro bem te vi e seu som denunciador: BEM TE VI BEM TE VI
Seu canto denuncia minha presença no pátio, mas também parece captar o momento de medo e de dor que estamos passando. Fica um tempo no muro, bem te vi bem te vi …2000…2021
Eis que nesse janeiro de 2022, num final de tarde, o som da gaita invadiu meu espaço…Meu coração saltitou. O gaiteiro havia silenciado sua gaita em respeito às mortes ocorridas na vizinhança. Viveu o luto solidário.
Um luto solidário que poucos são capazes de viver. Principalmente aqueles que negam a presença do inimigo invisível, do verdadeiro intruso indesejado, que é o corona vírus e suas variantes.
O silêncio da gaita foi interrompido. No entanto, o silenciamento ronda vidas.
Nesse momento, recebo notícia de mais um silenciamento. De uma mãe solo.
Do outro lado da cidade, outros foles de gaita silenciam.
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