Este post será em primeira pessoa. Geralmente, o sujeito do discurso do dito e não dito aparece para fechar a reflexão.Não será o caso desta postagem.
Vivi minha infância e adolescência no campo. Interação plena com a natureza. Com a terra,com o rio,com as plantas, com os animais, com as aves, principalmente com as aves. A narrativa, a seguir , terá os pássaros como personagens protagonistas.Posso enumerar os pouquíssimos brinquedos industrializados que tive. Foram eles: um jogo de panelinhas de plástico, modelo viandas. Uns pratinhos. Três bonecas. Sendo uma delas, um bonequinho, o Paulinho, que o acompanhava um bico, uma mamadeira e um pinico minúsculos. As bonecas se chamavam Isabel e Marli. Apenas estes.
No entanto, eu tinha duas caixas cheias de tudo que possa a imaginação do leitor alcançar. Caixas, caixinhas, tampas de vidro, vidrinhos, retalhos( minha irmã era costureira) de todas as cores que a indústria têxtil da época produzia, a maioria listrados, denominados de pano riscado…a lista de brinquedos ” inventados”, não era modesta, tudo que aparecia e que se assemelhasse a um móvel, utensílio de casa, incluindo até mesmo ossos de gado abatido e que os catava no campo, lembro que viravam panelas, tudo estava na caixa da brincadeira intitulada brincar de casinha.
Veio a adolescência. Hora de abandonar as brincadeiras de menina. Ruptura. Uma das primeiras de minha vida. Foi difícil me separar da boneca Isabel. Ela sentia minha falta…como deixá-la esquecida dentro de uma caixa ? Foi uma dor…
O que restava para menina-moça fazer? Foi a leitura que me encontrou ou eu a encontrei. Li, do acervo da biblioteca escolar todos os clássicos da literatura brasileira do período romantismo e realismo: José de Alencar e Machado de Assis. Sofri com a história de A Moreninha. De Capitu. Relia nas férias, quase todos eles. O Cortiço, de Aluísio de Azevedo e suas cenas picantes. Rita Baiana e seus amores…Devorei os livrinhos de bolso narrativas de faroeste e romance que meu irmão colecionava, as histórias de romance envolvendo cenas de sexo, ele escondia, mas os descobria sempre. Mais tarde, chegou a coleção Vagalume .
Ok. E os pássaros protagonistas?
Era a época dos cartões postais e cartas que chegavam pelo correio. Os enamorados recorriam a esses recursos românticos. Esperar pela carta era como hoje, ficar olhando no celular se ele visualizou, se enviou um emoji…Esperar pelo baile. Pela reunião dançante. Pela festa da capela. Pelo torneio de futebol. O anseio pelo encontro amoroso. Disso nasceu a brincadeira : GOSTO, DESGOSTO, CARTA, CONVITE, ENCONTRO.
Consistia em visualizar e contar pássaros voando ou assentados em fios de luz.Eram muitos, desde o quero-quero até a gralha azul. Um pássaro GOSTO. Dois pássaros DESGOSTO. Três pássaros CARTA. Quatro pássaros CONVITE. Cinco pássaros ENCONTRO. Valia como bom presságio todos, exceto dois pássaros que remetia ao desgosto. Imediatamente o olhar ia em busca de mais um pássaro, esse seria o recebimento de uma carta. Que alivio. PS: Ainda bem, que os agrotóxicos das lavouras dos anos setenta e oitenta não os tornaram extintos. Lá, estavam eles, os belos e resistentes sobreviventes à ganância humana.
Ainda hoje, quando observo os pássaros, a brincadeira de minha autoria,continua sendo meu amuleto para boas notícias, para bons encontros. O desgosto teima em aparecer. Mas logo voa.
Aprendi, com os pássaros, migrar. Às vezes imigrar para encontrar a menina ou a mocinha que vive dentro de mim.

